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"Causos"
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ASTROS
E BICHOS
O
mercado de peixe de Aracaju era quente, luminoso, pitoresco
e barulhento. Estávamos em grupo, toda a equipe que viajava
pelo Projeto Pixinguinha fazendo shows pelo Brasil: Luhli
& Lucina, Antonio Carlos & Jocafi, Kleiton & Kledir, os músicos
e o pessoal da produção, sentados no meio do mercado entre
as bancas de frutas e frutos do mar, comendo peixe frito com
farinha. Era nossa primeira etapa da viagem, começávamos a
nos conhecer. Foi aí que tive o primeiro impacto com a personalidade
singular do músico baiano Antonio Carlos.
Nos
vendo comer peixe, começou a dizer, muito sério:
- Detesto peixe. Detesto mesmo! Odeio peixe!
Pegou
um peixe rabudo na banca ao lado e o segurou firme, encarando
os olhos mortos do bicho com seus grandes olhos claros. Continuou
a dizer,já em voz alta:
- Odeio peixe! Odeeeio peixe!!!
E
começou a dar dentadas no peixe,sem se importar com as escamas,
mastigando com fúria, repetindo cada vez mais alto:
- ODEIO PEIXE!!! OODEEEIO!!!!!
E
dava bocadas arrancando nacos do peixe, para espanto de todos.
Odiava, a ponto de comer....
Já
numa outra viagem, dessa vez dividindo o palco com Belchior,
chegamos ao Acre e ao sair do avião para o bafo tórrido do
clima de lá, nos deparamos com baratas de quase um palmo se
arrastando pela pista. E ninguém ali dava a menor atenção
elas. Minha vontade era voltar correndo pro avião! Tenho horror
de barata, uma repulsa absoluta, invencível, incontrolável...
Aquela
noite foi um pesadelo. Nos hospedaram nuns pavilhões muito
bonitinhos, usados para alojar militares em trânsito. Os quartos
estavam fechados há algum tempo. No que começamos a usar o
banheiro, elas começaram a sair dos ralos. Baratas em profusão.
Passei
aquela noite encolhida, sentada rígida na cama toda enrolada
nos lençóis, com os olhos fixos na fresta da porta do banheiro.
Lucina
corria até o quarto em frente, batia na porta e lá vinha Belchior,
de roupão, olhos fechados de sono, de chinelo na mão perguntando:
- Quedê? Onde tá? E matava todas elas.
Nem
sei quantas vezes ele veio, naquela noite medonha. Não teve
um resmungo, uma cara amarrada.
Paciência
assim, só sendo um santo ou um cavalheiro. Santo, Belchior
não é. Mas cavalheiro... ah !É um perfeito gentleman. Sempre
serei grata a ele por aquela noite. E nem sei se ele se lembra.
Pode ser que ele ache que foi só um sonho ruim...
Em
matéria de bicho não tem ninguém igual a Ney Matogrosso. Ele
se comunica com os animais de uma forma muito especial. Uma
vez há muito tempo, fui com ele no Zôo. Macacos, aves, corças
e capivaras vinham até ele, para que as afagasse...
A
cena mais incrível do Ney era com uma cacatua branca, belíssima
com seu topete de plumas, que havia pertencido a uma cantora
lírica. Ney chegava perto dela e entoava uma ária de ópera.
A
cacatua, eriçando as penas, respondia em contracanto num magnífico
timbre de soprano, com tremolos impecáveis. Era um dueto para
ouvidos de reis e quem não ouviu, ouvisse.
Pois
o Ney soltou a cacatua, com mais dúzias de pássaros, nas matas
do sitio que comprou, na região de Cabo Frio.
Preservou
um amplo trecho de mata virgem, onde manda colocarem frutas
e grãos para alimentar os bichos, enquanto crescem as fruteiras
que plantou por todo lado.
Além
de gatos e cães, o único animal que Ney mantém consigo é uma
macaca. Mas isso já é outra estória...
Quando
eu e Lucina chegamos pela primeira vez a Salvador fomos recebidas
com toda galanteza pelo cantador Xangai.
Ele
se compenetrou em ser o mais perfeito anfitrião. Deu canja
no nosso show, nos levou a passear de carro pela cidade. Nos
convidou para almoçar em sua casa em Itapuã, preparou pessoalmente
deliciosos lagostins com tempero especial.
Após
o almoço, em sua varanda ensolarada, conhecemos seu papagaio
Lourival, o animal mais extraordinário que já conheci em minha
vida.
Lourival
era um papagaio verdíssimo, grande e garboso, que não contava
piadas nem dizia palavrões. Mas compunha. Isso mesmo! Ele
criava melodias. Bastava que se desse o tema.
Podia
ser uma melodia simples, como "Parabéns pra você". Lourival
escutava, virando a cabecinha para um lado e para o outro,
depois abria o grande bico curvo, com aquela linguinha preta
apontada para fora e emitia um som semelhante ao assobio humano.
Repetia o tema com precisão e ia criando variações, modulando,
compondo uma musica perfeita, até que o raciocínio melódico
o trazia de volta ao tema original e ele completava sua criação
com um tremolo final. Depois, todo satisfeito, dançava alternando
os pés no braço do violeiro seu dono.
Aí
vinha outro tema e ele desandava novamente a compor, desenvolvendo
sempre um raciocínio melódico impecável. O bicho tinha compreendido
os princípios da modulação, dos intervalos, das funções harmônicas!
Pode???!!!! Papagaio!!!!
Deitada
na rede, no fim da tarde, escutava eu Xangai cantarolando
no banheiro, tomando uma chuveirada, enquanto o papagaio,
colado ao vidro da janela, fazia vozes em dueto com o cantador.
O efeito era absolutamente mágico.
Perguntei
pro Xangai porque ele não mostrava Lourival no Fantástico.
Ele riu e disse:
- Ah, minha nega, se eu levar vão assustar meu bichinho. Vão
estourar flashes, estressar ele, vou perder essa minha vidinha
mansa... Se eu gravar, vão dizer que é truque, ninguém vai
acreditar mesmo... Então deixa, deixa ele aqui na varanda,
compondo só para ouvidos de eleitos... deixa o bichinho ser
feliz...
E
eu compreendi e concordei com ele.
A
tarde arroxeava no horizonte, a brisa salgada era morna e
acariciava a pele num frescor delicioso. A casa era oásis.
E
o papagaio Lourival era o guardião daquele tesouro, o tesouro
da paz do pirata cantador.
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O
ANJO DE BERLIM
Estávamos
numa enrascada. O carro havia enguiçado naquela estradadeserta,
numa madrugada gelada, no meio de lugar nenhum. Fazíamos uma
tournée na Alemanha.
Nosso
amigo Dada, ardoroso fã paulista de Luhli e Lucina, tinha
se dado bem em Berlim, vendendo caipirinha e fazendo batucada.
Havia armado para nós uma série de shows por todo o país,
“só pelo prazer de ver vocês arrasarem”, dizia ele. Dado é
um belo homem, grande, negro e musculoso, com o riso da bondade
sempre brilhando no rosto. Estava vivendo um intenso romance
com Alexandra, loura de família nobre, que mesmo sem nos conhecer
havia embarcado na idéia de Dada e nos dava todo o suporte
de produção.
Mas,
naquele momento, seu lindo carro esporte de nada nos servia,
no crescente frio de quase inverno. Ela havia conseguido,
através do celular, chamar o socorro rodoviário. Seriam no
mínimo duas horas de espera até o socorro chegar, vindo da
cidade mais próxima.
Nós,
os brasileiros, pusemos mão a obra. Começamos a tirar das
malas todas as roupas. Nos embolamos os quatro no banco de
trás do carro bem fechado, nos cobrimos com aquele monte de
pano entre ataques de riso, contando piadas picantes, nos
enroscando uns nos outros, numa bobeira sem fim. Na brincadeira
o tempo passou rápido, veio o socorro e conseguimos chegar
em nosso destino com o dia clareando.
Dois
meses depois, já no fim da temporada, um show no sul da Alemanha
foi desmarcado e ficamos com uma brecha de 4 dias na agenda.
Dada
resolveu ir a Zurich dar uma força na produção de amigos brasileiros
que encerravam a tournée de um grupo de maracatu, com 40 pessoas
no elenco. Acabei indo com ele, pra ajudar na copilotagem
nas auto estradas de alta velocidade. Lucina, às voltas com
uma forte gripe, preferiu ficar quietinha em Berlim.
No
fim da tarde do segundo dia em Zurich, no meio daquele agito
todo, senti uma súbita vontade de ficar sozinha.
Fui
para o quarto das crianças, na casa onde nos haviam hospedado,
peguei no violão e brotou dos meus dedos um solo delicado,
um tema prontinho, que rapidamente anotei, para não esquecer.
E
logo estava de novo no movimento da festa de despedida do
pessoal.
De
volta a Berlim, Lucina me contou que, no segundo dia, havia
melhorado da gripe e resolvido dar um passeio. Tinha ido até
o anjo de Berlim, uma grande estátua dourada que é um marco
na cidade.
Disse
ela que era uma esplanada descampada e imensa, com um vento
cortante. Que ela andava e andava e parecia não acabar nunca.
Lá
chegando, ainda havia uma escada comprida para subir torre
acima, até alcançar os pés do anjo, numa pequena varanda,
de onde se descortinava a cidade inteira. Com Berlim aos seus
pés e a tarde caindo, numa inspiração repentina, ela escreveu
uns versos na agenda.
Os
versos se encaixaram como uma luva na melodia que eu havia
feito em Zurich. Comparamos o horário, era o mesmo. O anjo
de Berlim havia enviado a mesma vibração para nós duas. Sob
o impacto da emoção criativa nos abraçamos aos prantos e Alexandra
acorreu, aflita, para saber porque a gente chorava. Ao ouvir
a resposta que era de pura felicidade, ela teve um desabafo,
exasperada:
“Ach!!!
Não entendo esses brasileiros!!! Quando estão felizes, choram.
E, quando têm razão pra se lamentar, dão risada!!!”
LUHLI
Julho
de 2006
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UMA
BÊNÇÃO AMAZÔNICA
Estávamos
no Amapá, eu e Lucina, num domingo de folga depois de uma
temporada de sucesso em Macapá. Tinham sido três dias de oficinas,
culminando no show num teatro super bem equipado, de botar
no chinelo muitos teatros do Rio e SP.
Os
amigos artistas programaram um encontro com os principais
compositores locais numa casa no meio da floresta, com caldeirada
de peixe e cantoria.
Fomos
de manhãzinha num jipe por trilhas até a margem de um igarapé
onde atravessamos em canoas até a outra margem. Na chegada,
araras e tucanos nos receberam com suas cores e gritos, numa
revoada. Uns degraus nos levaram a uma passarela larga que
ia até a casa. Essa passarela se alargava num alpendre coberto,
com mesas compridas e bancos, uma churrasqueira, redes pelos
cantos, e um chuveiro ao ar livre. Ali nos instalamos e passamos
o dia, tomando caldinho de piranha e comendo peixe na brasa.
A casa era grande e esparramada, assentada sobre palafitas,
por causa da época das cheias.
Eles
transportam as máquinas por barco, instalam uma serraria improvisada,
abrem uma clareira de 50 metros, constroem a casa e tudo que
tem dentro dela com a madeira dali mesmo, com grandes janelas
sem vidraças, só com tela.. Fazem a casa bem no meio da clareira,
pra não haver risco de alguma árvore cair encima. A altura
das arvores da região é 50 metros... não é essa floresta que
temos aqui no Sul, é de dar medo. Era pleno dia, quando cheguei
na orla da mata pra dar uma espiada.Com alguns passos nela
adentro já quase não podia enxergar, tamanha penumbra, não
daria pra ler uma folha de papel.
Voltei
correndo para o abrigo do alpendre, para uma chuveirada, pois
na mata não havia a bendita brisa vinda do grande rio e o
calor era de estufa.
Estava
com vontade de me refrescar naquele igarapé. Mas fiquei olhando
um caboclinho que pescava próximo e em poucos minutos ele
tirou da água um fieira de piranhas. Entendi porque ninguém
falava em toma banho de rio... Começamos a cantoria. Cada
um mostrava duas ou três canções e passava o violão adiante.
Aos poucos uma camaradagem boa se instalou, uma falta de pressa,
preguiça e conforto, a cumplicidade se firmando em sorrisos
e olhares, cada música valendo mais que mil palavras.
Entre
chuveiradas e canções a tarde foi passando, até que nuns poucos
arbustos próximos pousaram alguns tucanos. Ficaram ali parados,
viraram platéia para nossa cantoria. Passamos a cantar para
eles, uns fazendo vocais para as cantigas dos outros, todos
já num grande coro tribal.
Comecei
a cantar a música Dois Mil Janeiros, parceria minha com o
grande poeta João Gomes, que era nosso anfitrião ali. E um
tucano começou a cantar junto. Grasnava no fim da cada ciclo,
dentro do refrão que se repete num ritmo sincopado, com a
voz fazendo uma melodia sem letra. Depois de meia dúzia de
vezes já não era mais coincidência. O tucano estava cantando
com a gente. Todos cantavam a meia voz, com os olhos na ave,
que rebrilhava suas cores na monocromia do verde. O refrão
foi se repetindo e a cada fim de compasso o tucano pontuava,
com seu timbre metálico, completando o coro dos homens com
suas vozes graves. O momento foi ficando eterno, num ciclo
hipnótico, éramos uma tribo numa cantilena sem fim. O tucano
com seu grito era a voz da floresta.
Meus
dedos já doíam no violão, mas não tinha coragem de interromper
a magia do momento. O céu aos pouco se coloria, a mata respirava
num grande alento, tudo era vivo e cantava com a gente, éramos
um só naquela clareira, ali era o centro do mundo, a paz era
sólida, a felicidade era um tucano pousado num arbusto anunciando
que eu era bem-vinda.
A
viagem no super-real foi interrompida pelo aviso: olha a hora
do pium, gente!
Foi
o tempo de juntar as coisas depressinha, embarcar nas canoas
com os primeiros mosquitos chegando, e entrar no carro com
eles já se esmagando nos vidros, querendo nosso sangue, nuvens
escuras de milhares de mosquitos num zumbido furioso.Escureceram
os vidros com corpos esmagados. Ficamos ali parados, esperando
a hora passar. Disseram que o pium tem hora, que assim como
vem, vai. E foram. Não ficou nenhum. Saímos pra limpar os
vidros e poder enxergar a trilha na floresta, no breu que
já fazia, pois naquelas matas equatoriais a noite chega súbita.
De
volta ao conforto impessoal do hotel tudo aquilo pareceu um
sonho. Mas foi uma realidade maior e melhor. Foi a benção
da floresta. A mata se abriu para minha música, e me deu sua
força.
Amo
a Amazônia. Inteira. Com sua ferocidade e delicadeza. Sou
uma filha da mata. Os tucanos que o digam.
LUHLI
Julho de 2006
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O
PRIMEIRO SHOW
O
primeiro show de Luli e Lucina, nos anos 1970, foi no teatro
Opinião.Era o teatro da moda, onde se apresentava a vanguarda
do momento.
Só
conseguimos o horário de meia noite e era um dia de semana,
mas topamos assim mesmo.
Caprichamos
na produção, com cenário e figurinos muito loucos.
Chegamos
no teatro antes da hora. Estava acontecendo um ensaio teatral
com a grande dama do teatro brasileiro Luiza Barreto Leite.
Na
hora do show, nossa platéia era um punhadinho de amigos heróicos,
que se dispuseram a nos prestigiar. O administrador do teatro
veio perguntar se queríamos desistir da apresentação, pois
o dinheiro da bilheteria só dava pra pagar o bilheteiro, a
gente não ganharia nada.
Apesar
de completamente motivadas para cantar, tivemos aquele momento
de hesitação e perplexidade. Foi aí que a Luiza Barreto Leite,
que estava de saída, veio até nós e disse:
- “Minhas filhas, se uma pessoa pagou para nos ver no palco,
merece assistir o melhor espetáculo da terra.”
E
fizemos o show, que foi o começo do caminho que me leva até
aqui e agora.
A
frase da grande atriz nos acompanhou vida afora, virou um
lema, uma diretriz. Nunca deixamos que cadeiras vazias em
teatros nos impedissem de cantar.
Foi
assim que construímos nossa carreira, alternativa e com alta
qualidade, angariando prestígio e reconhecimento profissional.
Fazendo
sempre o melhor espetáculo da terra...
LUHLI
Junho de 2006
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O
APLAUSO
Era
na beira de um rio em Minas Gerais, num dia de folga depois
de vários shows.
Como
sempre, pedimos à moçada do lugar para nos levarem em cachoeiras
e aquelas eram das mais belas que já conheci.
As
cachoeiras do Mingu fluíam em diversos saltos, que se despencavam
em águas límpidas, cercadas por um arvoredo florido.
Escolhemos
uma queda em forma de ferradura, com duas pontas de pedra
se projetando no espaço e, no fundo do arco, a água, desabando
lá em baixo, num poço revolto.
O
grupo se espalhou numa das pontas de pedra, entre mochilas
e sanduíches, enquanto eu, em busca dos últimos raios de sol
da tarde, fui para a outra ponta da ferradura, onde havia
como descer até a metade do paredão e chegar numa plataforma,
onde o sol fazia brilhar um jato d'água que se desviava da
queda maior.
Era
uma ótima ducha, onde fiquei massageando as costas, iluminada
como num pequeno palco, olhando para a turma do outro lado,
que parecia uma platéia.
O
rumor constante da água caindo soava como um aplauso sem fim.
Comecei,
de brincadeira, a fazer reverências para a cachoeira, agradecendo
como num fim de show. E, de repente, percebi.
Entendi
que o aplauso é que é uma cachoeira, sim, uma cachoeira de
emoções, cada palma uma gota, água pura em movimento.
Que
na platéia as pessoas não podem falar ou se mexer, que no
aplauso se concentra a reação do público, toda a emoção causada
pelo espetáculo.
Desde então, no fim de cada show, abaixo a cabeça com alegria
e recebo a benção do aplauso.
Eu,
que antes não sabia o que fazer com o aplauso, aprendi que
ser artista não é só saber entregar arte ao público, é também
saber receber.
E
fico limpa de corpo e alma.
LUHLI
Março de 2006
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PRESENTE
DO VELHO CHICO
Eles me ouviam de corpo inteiro. Se embebiam nas cantigas.
No fundo do mar tem uma pedra,
debaixo da pedra tem areia.
Quem manda no mar?
Sereia!
Respondiam em uníssono, cantando alto.
Eram uns duzentos, todos cor de areia suja, roupas indefiníveis
pelo uso, peles curtidas de sol e vento.Grenhas. Caras caboclas.
Pescadores, suas mulheres e crias. Sorvendo ávidos a música
que nós, da cidade grande, fazíamos ali, naquele areião de
Deus, sob o refletor absoluto da lua cheia.
No
caldeirão da pororoca do Rio São Francisco desaguando no mar
havia aquela ilha, banco de areia no meio da turbulência da
foz.
A
aldeia, de poucas ruas. Os tetos, de muitas palhas.
Luz não havia ali, nenhum milagre maligno da civilização.
Me levaram de arrasto de Aracaju até aquele mundão de água
e vento alísio, beira barco, beira rio. No vilarejo se negociou
com cerveja o aluguel da embarcação onde nos empilhamos rumo
à ilha do Cabeço, motor pipocando sob a pele na correnteza
do Velho Chico, levando de um tudo, bananas e colchonetes,
panelas, zabumba e violão. Vinha perdida do ontem, sem futuro.
Refugiada na lonjura, fugindo da minha vida. Duvidando do
amor, da fé, da arte, de todas as bem querenças.
Fim de linha. Meu homem morrendo aos poucos, o mundo desabando.
Corpo doente e alma embrutecida pelo infortúnio.
Quem manda no mar?
Sereia!
Gritavam, estridentes e felizes, no diapasão da brisa ensopada
de lágrimas.
Vou morrer de dor, meu mar.
Desistir de cantar, buscar emprego fixo... palmas ritmadas
na brancura do luar... dinheiro certo, segurança , antes que
seja tarde... violão e tambor, boca no mundo, passo miudinho,
sem microfone, no fundo do mar...
Chegamos num alvoroço de crianças selvagens.
Na palhoça bem varrida logo o fogão de lenha era aceso.
Barrica de água fresca, vinda de carroça. Camarão graúdo,
presente de pescador. Côco verde, tirado ali mesmo pelos moleques.
Dias passados em praia e rede, papo comprido, sol e sede boa.
A gente comia um peixe frito de despedida quando um reboliço
chamou na porta. Eram mulheres com bebês grudados nos peitos,
homens arredios, velhos crivados de rugas e a molecada toda,
queriam ouvir a moça da cidade cantar.
Povo que nunca vi, que não divulguei nos jornais, que não
anunciei na tv, que não distribui ingressos, nem colei cartazes,
nem me escutaram pelo rádio.
O ritmo quem dava era o xique xique dos muitos pés alisando
a areia. O café foi coado muitas vezes, passando nas cuias,
de mão em mão em mão. Muitas paneladas de pipoca coroando
a festa.
Homens colados nas mulheres no xaxado puladinho.
O menestrel em mim chamando na veia.
Soltavam versos, brincavam rimas, desafiavam na risca do repente.
E riam, riam, perdidinhos, já desfiando estórias de pescarias.
O gravador de pilha registrou toda a magia, entre espanto
e maravilha cantaram com eles mesmos, se multiplicando.
Eu ali, exercendo o dom, sendo som. Felicidade revolvendo
entranha, acordando dentro. Meu lobisomem virando pelo avesso.
Todos fizeram fila pra apertar minha mão, agradecer. Mulheres
escondiam a cara nos vestidos,de puro enleio. Os homens me
tiravam os chapéus. As crianças estalavam beijos babados.
Sucesso absoluto.
Meu talento tomando prumo, meu prumo virando pique, meu sonho
tomando rumo.
Ainda hoje, quando bate um desânimo, escuto aquela fita. Quem
manda no mar? Puro prazer de estar viva.
A ciranda rodando livre, na festa do luar.
Refaço a alquimia, uma quentura na alma.
Uma certeza eterna na garganta.
De ser música como quem se merece.
Presente do Velho Chico.
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